Cinderela
No início, tudo era fantástico na vida de Cindy. Os pais jogavam juntos num clube pequeno e ela ia dando os primeiros passos no Corfebol, embebendo-se inicialmente no agradável elixir do Corfebol Social e percorrendo devagar os degraus do Corfebol Desportivo. Era um clube modesto mas com um ambiente maravilhoso.
Uma fatalidade, porém, veio mudar radicalmente esse percurso. A mãe de Cindy teve um acidente e a jovem ficou orfã num momento da vida em que tanto necessitava do carinho materno – se é que os há em que essa necessidade não existe.
Quando perdeu a mãe, Cindy sentiu que todo o mundo se desmoronava à sua volta. Não era para menos; o seu pai sucumbira aos encantos de uma malvada treinadora de um clube doutra cidade, onde até conseguiu arranjar emprego, e mudaram-se para lá.
Longe dos amigos, inadaptada ao novo clube, muito mais competitivo, sem conseguir uma convivência sã com a sua madrasta e – pior de tudo! – tendo de aturar a mesquinhez das duas novas enteadas do seu pai, Cindy desesperava. Chorava pelos cantos, aborrecia o pai com as suas crises de má disposição, mas, a certa altura, lá se convenceu que a vida tinha de continuar e que mais valia resignar-se e tentar prosseguir da melhor forma.
Ora calhou isto precisamente na pré-época, quando as gémeas, as novas “irmãs” de Cindy, andavam em polvorosa na ânsia de, após anos de esforço e espera, finalmente subirem à equipa A.
Para Cindy, essa não era uma meta. Pelo menos, não o era da forma obsessiva que revelavam as gémeas. Se ficasse na A, ficava com satisfação; se não ficasse, paciência. Mas tinham-lhe ensinado que devemos sempre dar o máximo em qualquer avaliação, sem abusar nas expectativas mas sendo sempre o melhor que podemos ser em cada momento, na vida e no desporto. Portanto, iria aos treinos de captação, mostraria o seu melhor como atleta, e tentaria ficar na primeira equipa, sabendo que não deixaria de dormir caso isso não acontecesse.
A sua madrasta, treinadora experiente cujos pupilos de maior orgulho eram as suas próprias filhas, assistiu a toda a semana de treinos de captação. Ia dando pequenas cotoveladas no treinador da equipa A, cada vez que alguma das suas filhas (as de sangue, só) fazia algo de positivo, “vês a capacidade que ela tem”, “viste aquele grande lançamento” (assim mesmo, sem pontos de interrogação, que esta é daquelas que não questiona – afirma), e também quando uma das outras falhava, “esta miúda nunca poderia ir para uma equipa A”, “olha que passador é esta tipa”. E, porque apesar do orgulho cego nas suas filhas, cego era só o orgulho e não os olhos, foi-se apercebendo que havia um talento inesperado proveniente do seu próprio tecto. Cindy revelava-se uma potencial jogadora para a equipa A.
Faltava só o treino final. Aquele que decidiria tudo. A expectativa aumentava lá em casa. Só havia 8 rapazes e 8 raparigas para 6 lugares, e as 3 jovens estavam no lote. E Cindy, sob olhares isentos, parecia ter o lugar quase assegurado. Havia que agir depressa, pensava a madrasta, não fosse uma das suas meninas perder a carruagem que tanto trabalho tinha dado a conquistar.
No dia do treino de todas as decisões, congeminado que fora o seu plano, deixou estrategicamente colocadas debaixo da mesa da cozinha as botas de jogo de Cindy. Tinha-a convencido a deixar as botas com ela, para as escovar e irem aprimoradas para o grande treino. Simultaneamente, deixou uma molheira em cima da mesa, precisamente em cima de onde estavam as botas. Por amor às suas filhas, serrou as asas à molheira. Ao jantar, a poucas horas do treino, pediu à pobre rapariga para ir buscar o molho.
Asas na mão, molho no chão, botas empapadas, chão para limpar, botas impraticáveis, manas sem botas de reserva, a confiar na palavra das próprias, Cindy só tinha aquelas, treinador não aceita material com mau aspecto, diz a madrasta, não vais poder ir, até porque tens de limpar essa porcaria que fizeste, adianta, e diz o pai que não há problema, que para o ano há mais, mas Cindy não aceita o triste fado e chora, como antes chorava e já disso se deixara, e vai para o seu quarto regar de lágrimas o pouco espaço que a sua condição de enteada lhe reservava.
Mal sabia ela que estava dentro de uma história infantil, daquelas que se diz serem de encantar, pois de tantos encantos se preenchem. E nas histórias de encantar só há lágrimas quando servem de advento ao encantamento de as enxaguar. E há fadas. E são as fadas que quase sempre encantam mundos e vidas, apagam tristezas e secam lacrimosas fontes. Pois assim foi, como o leitor já decerto adivinhara, porque antes deste Avô alguém tinha já escrito uma Cinderela, sem Corfebol mas com a vantagem de ser a original. Pobre Avô, que vive de cópias imperfeitas do que outros já escreveram! E mesmo que salpicadas da holandesa modalidade, não passam de cópias, réplicas, qualisignos icónicos remáticos, ou outros ismos de que nem Charles Peirce se lembraria.
A Fada, que merece uma maiúscula no início do nome, surpreendeu Cindy no quarto, em pleno choro. Já a tinha surpreendido outras vezes, noutras circunstâncias. Se eu fosse um Avô ordinário até contaria daquela vez que a surpreendeu de mão entre as pernas a olhar para umas fotos duma revista pouco digna, com homens despidos. Mas como não sou, nem vou referir tal coisa. Esta foi, porém, a primeira vez que se dirigiu à sua protegida. Era uma Fada inexperiente e gostava primeiro de observar e só em último caso intervir.
O primeiro contacto foi um bocado nonsense. Quem és? Sou a tua Fada madrinha. Yá!, fixe, só me faltava uma fada gozona, eu cá só tenho é um Fardo Madrasta, ‘tás a ver? Acredita em mim, eu posso cumprir os teus sonhos e desejos; Podes, podes, é isso e xarope p’rá tosse... Enfim, ganhar a confiança de uma adolescente traumatizada é sempre complicado, mesmo para uma Fada. Mas lá se entenderam e, de nariz torcido mas com esperança no fundinho da alma, Cindy lá ouviu o que a Fada tinha para lhe dizer. O golpe final foi quando se desculpou dizendo que tinha de ir à cozinha limpar a trampa que tinha feito e a Fada lhe disse que não se preocupasse porque já o tinha feito por ela. Não habituada a que alguém fizesse o que quer que fosse em seu lugar, a jovem deixou o gelo derreter e a empatia instalou-se.
A coisa era simples. Lá estavam umas botas novas, a brilhar, uma t-shirt limpinha, uns calções reluzentes. Lá fora, uma abóbora tornava-se um carro rápido o suficiente para colmatar o atraso com que já estava para o treino, dois ratos fariam de motoristas, o cão ficava o amigo que vai para a bancada dar apoio moral (boas notícias, portanto). Mas havia um senão: Nunca seria Cindy a aparecer; a sua figura seria deformada e ninguém a reconheceria (más notícias, agora).
Porquê, questionava-se, assustada, a nossa protagonista. Mas não aguardava resposta, que nisto das histórias fantásticas não há lógica para ninguém, ainda mais quando mete fadas. De qualquer forma, nem tudo era mau. Ela poderia aparecer ao treino que, por estar envolta num encantamento, ninguém questionaria a sua presença lá. Seria tratada como se pertencesse ao clube e estivesse seleccionada para aquele treino final (sim senhor, uma boa notícia).
Portanto, à primeira vista, ir ou não ir era precisamente as mesma coisa. Poderia ser a melhor no treino e nunca seria seleccionada, porque ninguém saberia que era a Cindy aquela misteriosa personagem, e isso era mau. Mas, com o seu espírito bom e desportista, Cindy sentiu a centelha da felicidade ao lembrar-se que apenas quereria participar, dar o seu melhor e, se ficasse ficava se não ficasse paciência, e isso era bom.
Para terminar este Ping-Pong de boas e más notícias, faltava o remate final, que era desagradável. É que o treino era das nove e meia às onze e meia da noite e à meia noite em ponto todos os encantamentos se desfariam – o carro era de novo abóbora, os motoristas (que iriam como pais) ficavam tão roedores quanto antes, o amigo de bancada viraria de novo rafeiro. As roupas (botas, calção, t-shirt), simplesmente desapareceriam, revelando Cindy como veio ao mundo, embora agora com formas e pilosidades mais salientes. E diga-se que esta jovem rapariga já estava bem diferente daquilo que era quando ao mundo assomou, para bem dos jovens rapazes que o olho ou a mão lhe deitassem.
Aceites as regras do jogo, lá seguiram para a Catedral de todas as expectativas. Á pressa, ou nem com carro de encantamento lá chegariam a horas.
O treino decorreu maravilhosamente para a nossa orfã. Foi de longe a melhor entre as quatro linhas. O treinador olhava-a já com a esperança de ter ali o garante de uma temporada com sucesso, embora lutasse com o seu cérebro para tentar perceber quem era ela e qual o seu papel naquela equipa. Quanto a raparigas, não teve dúvidas. Mesmo que pudessem ser boas jogadoras, as gémeas tinham um efeito negativo sobre o grupo e não as queria na equipa. Quanto a rapazes, teve dúvidas em escolher o 6º e prolongou o treino até conseguir descortinar aquele pequeno clique que lhe permitisse fazer a escolha definitiva.
Cindy nem reparou que o treino estava a prolongar-se, tal era a satisfação de ali estar a dar o seu melhor. Nem sequer quando o cão começou a agitar-se, saltando na bancada, acenando, chamando o seu nome. Pensou que era da satisfação de, por uns instantes aquele cão ser homem. Pensou que seria para aproveitar ao máximo o uso de mãos, de voz, de direito a saltar numa bancada.
E o mesmo tipo de pensamentos lhe acorreu quando, lá de fora, do carro, começou a ouvir apitar. Seriam os ratos a gozar o momento, a rara oportunidade que tinham de se sentar num carro e apitar. Talvez até a abóbora estivesse satisfeita de produzir ruído, de transportar ratos e cão e garina. Afinal, na cabeça de Cindy, todos estavam contentes e ela sorria, sem perceber que a meia noite se aproximava ameaçadoramente.
Poucos minutos antes da fatídica hora, o treino terminou. O treinador deu os parabéns a todos e anunciou os escolhidos, perante a cólera da mãe duplamente humilhada, que saiu arrastando os pés e as chorosas filhas, enquanto declamava insultos e ameaças em direcção ao responsável pela selecção de talentos.
Dispersado o grupo, uns mais contentes que os outros, o treinador pediu a Cindy que ficasse um pouco mais, para falar em privado com ela. Cindy aceitou, mas estava já a caminho do duche e pediu para falar só depois do reconfortante banho, ao que o mister anuiu.
Esta conversa atrasou-a em relação às outras, que tomaram os seus duches a correr, com pressa de saltarem para os braços da família e receber em mimos os parabéns pela escolha, ou então, se fosse o caso, de saltarem para os braços do namorados e receber em ainda mais intensos mimos os parabéns pela mesma escolha. Estava nos finalmentes do enxaguamento quando o velho funcionário do pavilhão já resmungava que era a última, que se despachasse, que já passava da meia noite e tinha de ir para casa, que os velhos também têm vida, mesmo quando são responsáveis por pavilhões desportivos.
Qual gongo ressoante, quais doze badaladas repicantes, da frase do velho senhor só a fracção “meia-noite” lhe ficou a ressoar, entre o tímpano e o hipotálamo. Meia Noite! Meia Noite!... O mundo desabou na sua cabeça. Que tola tinha sido em esquecer-se do dead line. E agora? As roupas, depressa, tenho de sair daqui. Quais roupas? Desapareceu tudo! Tudo! E agora?... E o simpático treinador lá fora à minha espera. O que fazer? Triste existência é esta de uma orfã que substitui os antidepressivos e outras drogas por uma Fada de ficção que a deixa nua num balneário com um velho impaciente do outro lado da porta. Foda-se!, gritou bem alto, para compensar as inúmeras vezes que essa palavra lhe tinha quase saído e por decoro nunca tinha dito.
O velho e o treinador não ouviram. Estavam entretidos a enxotar um cão que tinha aparecido misteriosamente na bancada. Lá fora, dois ratos roíam a casca de uma abóbora.
Cindy saiu pela pequena janela do balneário e, enrolada em si mesma, tapando-se a si consigo própria, esgueirou-se por entre sebes e contentores até chegar a casa, pés doridos, alma em alvoroço. Alvoroço era o que também dominava lá em casa, com a gritaria das despeitadas jovens e da furiosa mãe. O pai de Cindy, encolhido, nem respondia, nem opinava, ficava a fingir que ouvia e concordava, submisso, medroso de contrariar a fúria feminina no seu mais exaltado esplendor. Foi fácil à pequena extraviada entrar em casa, subir ao quarto, deitar-se como se nada tivesse acontecido. Afinal de contas, ninguém tinha dado pela sua falta.
Passou a noite em branco, a pensar nas emoções que vivera, e não foi a única. O treinador da equipa A, jovem promessa nestas coisas do treino, também não conseguiu dormir. Quem seria aquela misteriosa jogadora que tinha desaparecido sem deixar sinal? Que jogadora! Que linda era! Não se lembrava da sua cara, mas tinha a certeza de sentir que era linda. Estranha sensação, estranhas emoções lhe despertavam aquela jovem. Tinha de saber quem era.
E sabia como o fazer. Rapaz virado mais para as aventuras do que para os romances infantis cor de rosa, era mais dado a ler o Robin dos Bosques do que a Cinderela. Para mais, a rapariga não tinha deixado uma bota para trás (e convenhamos que uma bota suada não tem o glamour de um sapato de cristal). Então, iluminado pela leitura do arrojado herói de Sherwood, organizou um torneio de lançamentos. A misteriosa rapariga lançava como ninguém. Mesmo que viesse de novo envolta naquela estranha aura de irreconhecibilidade, o seu lançamento iria revelá-la.
Só que as coisas estavam agrestes para o lado da casa de Cindy. Depois de tentar em vão puxar cordelinhos para demitir o treinador por incapacidade, a madrasta proibiu as filhas de voltar a jogar. Proibiu que se voltasse a falar de Corfebol naquela casa. Cindy nem ousava pensar em voltar a treinar e apenas sabia o que se ia passando através da Internet.
Foi, aliás, pela Net que soube do torneio de lançamentos. E a sua vontade de participar foi tanta que agitou o coração da Fada. Vocês, leitores incautos e jovens, não sabem como é que isto funciona, por isso eu explico. É que eu sou um Avô tão velhinho que ainda venho do tempo em que as fadas andavam aí por todo o lado e iam explicando os segredos encantados. Hoje, se quisermos aprender alguma coisa com os seres estranhos que circulam connosco nas ruas, pode ser que aprendamos algumas palavras em ucraniano.
Bom, mas eu ia explicar a cena. Então é assim: as nossas emoções libertam ondas, odores e vibrações. Cada emoção tem o seu próprio código, só perceptível pelas fadas. A fada, lá onde estiver, recebe primeiro as ondas, que são suaves e atingem principalmente as fadas mais experientes. Depois vem o odor da emoção, que se entranha pelo nariz e é mais perceptível, até pelas fadas novatas. As vibrações são como as ondas, mas mais fortes. Tão fortes que às vezes até as pessoas as sentem. Servem, no mundo das fadas, para acordar aquelas que estejam a dormir e não tenham acordado com os dois primeiros sinais.
Pois a nossa Fada só reagiu ao terceiro sinal. Não porque estivesse a dormir, mas porque tinha ficado zangada com a Cindy por causa da sua imprudência. Hesitou, mas as vibrações eram tão fortes que agitaram bem agitado o seu coração de fada.
Conversaram a chegaram a acordo. Iriam usar o mesmo encantamento, desta vez sem cão (que tinha sido internado num hospício para cães por ter a mania que era homem) nem ratos (que tinham sofrido uma intoxicação alimentar por terem comido uma abóbora com vestígios de gasóleo) nem abóbora (que tinha sido devorada pelos ratos). Mantinha-se a questão da roupa e ao meio-dia, porque o torneio era de manhã, o encantamento acabava. Cindy prometeu que desta vez não iria facilitar. Que antes das onze e meia iria embora, desse por onde desse.
A Fada era um bocado forreta e só tinha a primeira ficha do livro de magias e encantamentos que vinha semanalmente num jornal de grande tiragem. É que o primeiro fascículo era gratuito e os outros tinham de se pagar. Esse primeiro fascículo era, precisamente, sobre esta coisa dos encantamentos que acabam a uma hora determinada, etc., e por isso é que recorria sempre ao mesmo truque.
Tal como Robin dos Bosques, Cindy foi soberba no torneio. Tal como Robin, Cindy venceu. Tal como Robin, Cindy foi descoberta. Mas o treinador era mais astuto que o Xerife de Nottingham (e estava protegido pelo facto de não ser o vilão da história, claro) e, temendo que aquela que cada vez mais se insinuava ao seu coração desaparecesse de novo, pediu a todos que fizessem um círculo em torno da vencedora, enquanto a aplaudiam.
Assustada, Cindy tentou fugir, olhando para o relógio onde os dois ponteiros quase se encontravam. Nada feito. Com uma intenção simpática, de puros admiradores da habilidade da jovem (que ninguém percebia quem era, mas que também não interessava), ninguém arredava pé e iam aplaudindo. O treinador foi buscar o troféu e entrou no círculo para o entregar à formosa rapariga.
Meio dia.
Troféu no chão, queixos no chão, Cindy mais vermelha que o Simão Sabrosa, silêncio, constrangimentos, Cindy mais exposta que a Mady Tims, basbaques os homens, invejosas as mulheres, Cindy mais observada que João Paulo II após a morte.
Uma fatalidade, porém, veio mudar radicalmente esse percurso. A mãe de Cindy teve um acidente e a jovem ficou orfã num momento da vida em que tanto necessitava do carinho materno – se é que os há em que essa necessidade não existe.
Quando perdeu a mãe, Cindy sentiu que todo o mundo se desmoronava à sua volta. Não era para menos; o seu pai sucumbira aos encantos de uma malvada treinadora de um clube doutra cidade, onde até conseguiu arranjar emprego, e mudaram-se para lá.
Longe dos amigos, inadaptada ao novo clube, muito mais competitivo, sem conseguir uma convivência sã com a sua madrasta e – pior de tudo! – tendo de aturar a mesquinhez das duas novas enteadas do seu pai, Cindy desesperava. Chorava pelos cantos, aborrecia o pai com as suas crises de má disposição, mas, a certa altura, lá se convenceu que a vida tinha de continuar e que mais valia resignar-se e tentar prosseguir da melhor forma.
Ora calhou isto precisamente na pré-época, quando as gémeas, as novas “irmãs” de Cindy, andavam em polvorosa na ânsia de, após anos de esforço e espera, finalmente subirem à equipa A.
Para Cindy, essa não era uma meta. Pelo menos, não o era da forma obsessiva que revelavam as gémeas. Se ficasse na A, ficava com satisfação; se não ficasse, paciência. Mas tinham-lhe ensinado que devemos sempre dar o máximo em qualquer avaliação, sem abusar nas expectativas mas sendo sempre o melhor que podemos ser em cada momento, na vida e no desporto. Portanto, iria aos treinos de captação, mostraria o seu melhor como atleta, e tentaria ficar na primeira equipa, sabendo que não deixaria de dormir caso isso não acontecesse.
A sua madrasta, treinadora experiente cujos pupilos de maior orgulho eram as suas próprias filhas, assistiu a toda a semana de treinos de captação. Ia dando pequenas cotoveladas no treinador da equipa A, cada vez que alguma das suas filhas (as de sangue, só) fazia algo de positivo, “vês a capacidade que ela tem”, “viste aquele grande lançamento” (assim mesmo, sem pontos de interrogação, que esta é daquelas que não questiona – afirma), e também quando uma das outras falhava, “esta miúda nunca poderia ir para uma equipa A”, “olha que passador é esta tipa”. E, porque apesar do orgulho cego nas suas filhas, cego era só o orgulho e não os olhos, foi-se apercebendo que havia um talento inesperado proveniente do seu próprio tecto. Cindy revelava-se uma potencial jogadora para a equipa A.
Faltava só o treino final. Aquele que decidiria tudo. A expectativa aumentava lá em casa. Só havia 8 rapazes e 8 raparigas para 6 lugares, e as 3 jovens estavam no lote. E Cindy, sob olhares isentos, parecia ter o lugar quase assegurado. Havia que agir depressa, pensava a madrasta, não fosse uma das suas meninas perder a carruagem que tanto trabalho tinha dado a conquistar.
No dia do treino de todas as decisões, congeminado que fora o seu plano, deixou estrategicamente colocadas debaixo da mesa da cozinha as botas de jogo de Cindy. Tinha-a convencido a deixar as botas com ela, para as escovar e irem aprimoradas para o grande treino. Simultaneamente, deixou uma molheira em cima da mesa, precisamente em cima de onde estavam as botas. Por amor às suas filhas, serrou as asas à molheira. Ao jantar, a poucas horas do treino, pediu à pobre rapariga para ir buscar o molho.
Asas na mão, molho no chão, botas empapadas, chão para limpar, botas impraticáveis, manas sem botas de reserva, a confiar na palavra das próprias, Cindy só tinha aquelas, treinador não aceita material com mau aspecto, diz a madrasta, não vais poder ir, até porque tens de limpar essa porcaria que fizeste, adianta, e diz o pai que não há problema, que para o ano há mais, mas Cindy não aceita o triste fado e chora, como antes chorava e já disso se deixara, e vai para o seu quarto regar de lágrimas o pouco espaço que a sua condição de enteada lhe reservava.
Mal sabia ela que estava dentro de uma história infantil, daquelas que se diz serem de encantar, pois de tantos encantos se preenchem. E nas histórias de encantar só há lágrimas quando servem de advento ao encantamento de as enxaguar. E há fadas. E são as fadas que quase sempre encantam mundos e vidas, apagam tristezas e secam lacrimosas fontes. Pois assim foi, como o leitor já decerto adivinhara, porque antes deste Avô alguém tinha já escrito uma Cinderela, sem Corfebol mas com a vantagem de ser a original. Pobre Avô, que vive de cópias imperfeitas do que outros já escreveram! E mesmo que salpicadas da holandesa modalidade, não passam de cópias, réplicas, qualisignos icónicos remáticos, ou outros ismos de que nem Charles Peirce se lembraria.
A Fada, que merece uma maiúscula no início do nome, surpreendeu Cindy no quarto, em pleno choro. Já a tinha surpreendido outras vezes, noutras circunstâncias. Se eu fosse um Avô ordinário até contaria daquela vez que a surpreendeu de mão entre as pernas a olhar para umas fotos duma revista pouco digna, com homens despidos. Mas como não sou, nem vou referir tal coisa. Esta foi, porém, a primeira vez que se dirigiu à sua protegida. Era uma Fada inexperiente e gostava primeiro de observar e só em último caso intervir.
O primeiro contacto foi um bocado nonsense. Quem és? Sou a tua Fada madrinha. Yá!, fixe, só me faltava uma fada gozona, eu cá só tenho é um Fardo Madrasta, ‘tás a ver? Acredita em mim, eu posso cumprir os teus sonhos e desejos; Podes, podes, é isso e xarope p’rá tosse... Enfim, ganhar a confiança de uma adolescente traumatizada é sempre complicado, mesmo para uma Fada. Mas lá se entenderam e, de nariz torcido mas com esperança no fundinho da alma, Cindy lá ouviu o que a Fada tinha para lhe dizer. O golpe final foi quando se desculpou dizendo que tinha de ir à cozinha limpar a trampa que tinha feito e a Fada lhe disse que não se preocupasse porque já o tinha feito por ela. Não habituada a que alguém fizesse o que quer que fosse em seu lugar, a jovem deixou o gelo derreter e a empatia instalou-se.
A coisa era simples. Lá estavam umas botas novas, a brilhar, uma t-shirt limpinha, uns calções reluzentes. Lá fora, uma abóbora tornava-se um carro rápido o suficiente para colmatar o atraso com que já estava para o treino, dois ratos fariam de motoristas, o cão ficava o amigo que vai para a bancada dar apoio moral (boas notícias, portanto). Mas havia um senão: Nunca seria Cindy a aparecer; a sua figura seria deformada e ninguém a reconheceria (más notícias, agora).
Porquê, questionava-se, assustada, a nossa protagonista. Mas não aguardava resposta, que nisto das histórias fantásticas não há lógica para ninguém, ainda mais quando mete fadas. De qualquer forma, nem tudo era mau. Ela poderia aparecer ao treino que, por estar envolta num encantamento, ninguém questionaria a sua presença lá. Seria tratada como se pertencesse ao clube e estivesse seleccionada para aquele treino final (sim senhor, uma boa notícia).
Portanto, à primeira vista, ir ou não ir era precisamente as mesma coisa. Poderia ser a melhor no treino e nunca seria seleccionada, porque ninguém saberia que era a Cindy aquela misteriosa personagem, e isso era mau. Mas, com o seu espírito bom e desportista, Cindy sentiu a centelha da felicidade ao lembrar-se que apenas quereria participar, dar o seu melhor e, se ficasse ficava se não ficasse paciência, e isso era bom.
Para terminar este Ping-Pong de boas e más notícias, faltava o remate final, que era desagradável. É que o treino era das nove e meia às onze e meia da noite e à meia noite em ponto todos os encantamentos se desfariam – o carro era de novo abóbora, os motoristas (que iriam como pais) ficavam tão roedores quanto antes, o amigo de bancada viraria de novo rafeiro. As roupas (botas, calção, t-shirt), simplesmente desapareceriam, revelando Cindy como veio ao mundo, embora agora com formas e pilosidades mais salientes. E diga-se que esta jovem rapariga já estava bem diferente daquilo que era quando ao mundo assomou, para bem dos jovens rapazes que o olho ou a mão lhe deitassem.
Aceites as regras do jogo, lá seguiram para a Catedral de todas as expectativas. Á pressa, ou nem com carro de encantamento lá chegariam a horas.
O treino decorreu maravilhosamente para a nossa orfã. Foi de longe a melhor entre as quatro linhas. O treinador olhava-a já com a esperança de ter ali o garante de uma temporada com sucesso, embora lutasse com o seu cérebro para tentar perceber quem era ela e qual o seu papel naquela equipa. Quanto a raparigas, não teve dúvidas. Mesmo que pudessem ser boas jogadoras, as gémeas tinham um efeito negativo sobre o grupo e não as queria na equipa. Quanto a rapazes, teve dúvidas em escolher o 6º e prolongou o treino até conseguir descortinar aquele pequeno clique que lhe permitisse fazer a escolha definitiva.
Cindy nem reparou que o treino estava a prolongar-se, tal era a satisfação de ali estar a dar o seu melhor. Nem sequer quando o cão começou a agitar-se, saltando na bancada, acenando, chamando o seu nome. Pensou que era da satisfação de, por uns instantes aquele cão ser homem. Pensou que seria para aproveitar ao máximo o uso de mãos, de voz, de direito a saltar numa bancada.
E o mesmo tipo de pensamentos lhe acorreu quando, lá de fora, do carro, começou a ouvir apitar. Seriam os ratos a gozar o momento, a rara oportunidade que tinham de se sentar num carro e apitar. Talvez até a abóbora estivesse satisfeita de produzir ruído, de transportar ratos e cão e garina. Afinal, na cabeça de Cindy, todos estavam contentes e ela sorria, sem perceber que a meia noite se aproximava ameaçadoramente.
Poucos minutos antes da fatídica hora, o treino terminou. O treinador deu os parabéns a todos e anunciou os escolhidos, perante a cólera da mãe duplamente humilhada, que saiu arrastando os pés e as chorosas filhas, enquanto declamava insultos e ameaças em direcção ao responsável pela selecção de talentos.
Dispersado o grupo, uns mais contentes que os outros, o treinador pediu a Cindy que ficasse um pouco mais, para falar em privado com ela. Cindy aceitou, mas estava já a caminho do duche e pediu para falar só depois do reconfortante banho, ao que o mister anuiu.
Esta conversa atrasou-a em relação às outras, que tomaram os seus duches a correr, com pressa de saltarem para os braços da família e receber em mimos os parabéns pela escolha, ou então, se fosse o caso, de saltarem para os braços do namorados e receber em ainda mais intensos mimos os parabéns pela mesma escolha. Estava nos finalmentes do enxaguamento quando o velho funcionário do pavilhão já resmungava que era a última, que se despachasse, que já passava da meia noite e tinha de ir para casa, que os velhos também têm vida, mesmo quando são responsáveis por pavilhões desportivos.
Qual gongo ressoante, quais doze badaladas repicantes, da frase do velho senhor só a fracção “meia-noite” lhe ficou a ressoar, entre o tímpano e o hipotálamo. Meia Noite! Meia Noite!... O mundo desabou na sua cabeça. Que tola tinha sido em esquecer-se do dead line. E agora? As roupas, depressa, tenho de sair daqui. Quais roupas? Desapareceu tudo! Tudo! E agora?... E o simpático treinador lá fora à minha espera. O que fazer? Triste existência é esta de uma orfã que substitui os antidepressivos e outras drogas por uma Fada de ficção que a deixa nua num balneário com um velho impaciente do outro lado da porta. Foda-se!, gritou bem alto, para compensar as inúmeras vezes que essa palavra lhe tinha quase saído e por decoro nunca tinha dito.
O velho e o treinador não ouviram. Estavam entretidos a enxotar um cão que tinha aparecido misteriosamente na bancada. Lá fora, dois ratos roíam a casca de uma abóbora.
Cindy saiu pela pequena janela do balneário e, enrolada em si mesma, tapando-se a si consigo própria, esgueirou-se por entre sebes e contentores até chegar a casa, pés doridos, alma em alvoroço. Alvoroço era o que também dominava lá em casa, com a gritaria das despeitadas jovens e da furiosa mãe. O pai de Cindy, encolhido, nem respondia, nem opinava, ficava a fingir que ouvia e concordava, submisso, medroso de contrariar a fúria feminina no seu mais exaltado esplendor. Foi fácil à pequena extraviada entrar em casa, subir ao quarto, deitar-se como se nada tivesse acontecido. Afinal de contas, ninguém tinha dado pela sua falta.
Passou a noite em branco, a pensar nas emoções que vivera, e não foi a única. O treinador da equipa A, jovem promessa nestas coisas do treino, também não conseguiu dormir. Quem seria aquela misteriosa jogadora que tinha desaparecido sem deixar sinal? Que jogadora! Que linda era! Não se lembrava da sua cara, mas tinha a certeza de sentir que era linda. Estranha sensação, estranhas emoções lhe despertavam aquela jovem. Tinha de saber quem era.
E sabia como o fazer. Rapaz virado mais para as aventuras do que para os romances infantis cor de rosa, era mais dado a ler o Robin dos Bosques do que a Cinderela. Para mais, a rapariga não tinha deixado uma bota para trás (e convenhamos que uma bota suada não tem o glamour de um sapato de cristal). Então, iluminado pela leitura do arrojado herói de Sherwood, organizou um torneio de lançamentos. A misteriosa rapariga lançava como ninguém. Mesmo que viesse de novo envolta naquela estranha aura de irreconhecibilidade, o seu lançamento iria revelá-la.
Só que as coisas estavam agrestes para o lado da casa de Cindy. Depois de tentar em vão puxar cordelinhos para demitir o treinador por incapacidade, a madrasta proibiu as filhas de voltar a jogar. Proibiu que se voltasse a falar de Corfebol naquela casa. Cindy nem ousava pensar em voltar a treinar e apenas sabia o que se ia passando através da Internet.
Foi, aliás, pela Net que soube do torneio de lançamentos. E a sua vontade de participar foi tanta que agitou o coração da Fada. Vocês, leitores incautos e jovens, não sabem como é que isto funciona, por isso eu explico. É que eu sou um Avô tão velhinho que ainda venho do tempo em que as fadas andavam aí por todo o lado e iam explicando os segredos encantados. Hoje, se quisermos aprender alguma coisa com os seres estranhos que circulam connosco nas ruas, pode ser que aprendamos algumas palavras em ucraniano.
Bom, mas eu ia explicar a cena. Então é assim: as nossas emoções libertam ondas, odores e vibrações. Cada emoção tem o seu próprio código, só perceptível pelas fadas. A fada, lá onde estiver, recebe primeiro as ondas, que são suaves e atingem principalmente as fadas mais experientes. Depois vem o odor da emoção, que se entranha pelo nariz e é mais perceptível, até pelas fadas novatas. As vibrações são como as ondas, mas mais fortes. Tão fortes que às vezes até as pessoas as sentem. Servem, no mundo das fadas, para acordar aquelas que estejam a dormir e não tenham acordado com os dois primeiros sinais.
Pois a nossa Fada só reagiu ao terceiro sinal. Não porque estivesse a dormir, mas porque tinha ficado zangada com a Cindy por causa da sua imprudência. Hesitou, mas as vibrações eram tão fortes que agitaram bem agitado o seu coração de fada.
Conversaram a chegaram a acordo. Iriam usar o mesmo encantamento, desta vez sem cão (que tinha sido internado num hospício para cães por ter a mania que era homem) nem ratos (que tinham sofrido uma intoxicação alimentar por terem comido uma abóbora com vestígios de gasóleo) nem abóbora (que tinha sido devorada pelos ratos). Mantinha-se a questão da roupa e ao meio-dia, porque o torneio era de manhã, o encantamento acabava. Cindy prometeu que desta vez não iria facilitar. Que antes das onze e meia iria embora, desse por onde desse.
A Fada era um bocado forreta e só tinha a primeira ficha do livro de magias e encantamentos que vinha semanalmente num jornal de grande tiragem. É que o primeiro fascículo era gratuito e os outros tinham de se pagar. Esse primeiro fascículo era, precisamente, sobre esta coisa dos encantamentos que acabam a uma hora determinada, etc., e por isso é que recorria sempre ao mesmo truque.
Tal como Robin dos Bosques, Cindy foi soberba no torneio. Tal como Robin, Cindy venceu. Tal como Robin, Cindy foi descoberta. Mas o treinador era mais astuto que o Xerife de Nottingham (e estava protegido pelo facto de não ser o vilão da história, claro) e, temendo que aquela que cada vez mais se insinuava ao seu coração desaparecesse de novo, pediu a todos que fizessem um círculo em torno da vencedora, enquanto a aplaudiam.
Assustada, Cindy tentou fugir, olhando para o relógio onde os dois ponteiros quase se encontravam. Nada feito. Com uma intenção simpática, de puros admiradores da habilidade da jovem (que ninguém percebia quem era, mas que também não interessava), ninguém arredava pé e iam aplaudindo. O treinador foi buscar o troféu e entrou no círculo para o entregar à formosa rapariga.
Meio dia.
Troféu no chão, queixos no chão, Cindy mais vermelha que o Simão Sabrosa, silêncio, constrangimentos, Cindy mais exposta que a Mady Tims, basbaques os homens, invejosas as mulheres, Cindy mais observada que João Paulo II após a morte.
6 Comments:
Ficou muito extenso!
Assim ainda vou assustar os poucos leitores que resistem.
E o final? Não sei se é um final feliz ou não... Não consigo chegar a uma conclusão, mesmo tendo-o escrito.
Mas é uma história bonita, acho eu.
... e quem é que me vai pagar a hora de trabalho que gastei a ler esta história?!...
Falta a bolinha vermelha no topo do ecran. Ó Avô, andas um bocado softcore.
A mim quem me pagou a hora (27 minutos) que gastei a ler a história foi o gozo que me deu a lê-la e também a todas as outras.
O final é estanho, falta qualequr coisa.
História de Categoria X. "Soft" ou "Hard", mas "core" com toda a certeza!
Talvez seja bom tornar este conto para maiores de 18 numa bela lição de moral: nunca aceites nada de estranhos! Nem roupa, nem boleia, nem companhia! Mesmo que digam que são 'Fadas', desconfia...
By the way, já ouço muitos 'cinderelos' e 'cinderelas' a sonhar alto com o título de campeão... E ainda faltam 5 jogos! Cá estaremos no final para fazer as contas...
Como diria o Coubertain: "Let the Games begin!"
"É isso e xarope para a tosse". Esta já não ouvia/lia há anos longos!
O Avô é mesmo cota, como eu.
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