Blog do Avô

O Primeiro Blogue sobre Corfebol (mas não só) em Portugal!

segunda-feira, junho 27, 2005

Um Conto Fora de Época (parte III)

“Futuro que era brilhante / Embaciou-se a pouco e pouco / Os passos ficaram lentos / Dando certezas de louco” (Xutos & Pontapés)

Jack não quis dormir. Esforçou-se para se manter acordado. Sentou-se numa cadeira ao lado da cama, pegou num bloco e rabiscou uns desenhos espontâneos, em que não tardou a verificar que se revelavam cenas dos seus encontros com os dois primeiros espíritos. A visita do Espirito do Corfebol Futuro atormentava-o, aterrava-o. O medo superava a curiosidade.
Mas o sono venceu-o. Consta que, lá no sítio em que as divindades se encontram com os seres sobrenaturais, o Morfeu tem uma relação próxima com os Espíritos. Vão tomar uns copos juntos e, enquanto o Morfeu não adormece, coisa que acontece sempre lá para a 3ª ou 4ª caneca, os Espíritos costumam pedir-lhe uns favores. Normalmente, pedem-lhe para derrubar as barreiras que alguns humanos atormentados colocam à chegada do sono. Os Espíritos nem sempre se revelam durante o sono, mas é o mais comum, dada a vulnerabilidade dos humanos nesse período particular.
- Olá, Jack.
O Espírito do Corfebol Futuro era de uma figura austera, rigorosa, o tipo de pessoa que escolheríamos para contabilista das nossas empresas. Jack tremeu, ia começar a gaguejar, mas nem isso conseguiu. Ficou firme e hirto como uma barra de ferro, sentindo os músculos tensos de pavor.
- Vamos lá então ver algumas pinceladas do Futuro – o Espírito estava bem disposto, apesar daquele ar impenetrável. Jack seguiu-o, sem perceber como. O cérebro não comandava o corpo.
Clarisse, uma jovem, chorava compulsivamente sentada na secretária do seu quarto.
- O que é que pensas da Clarisse, Jack?
- É uma miúda que joga nos Stairways. O Corfebol é a única vida social que tem. Este ano deu em árbitra.
- É má árbitra?
- Não é pior que outros que por aí andam. Até nem é má, para quem começou este ano.
- Então porque é que é massacrada por ti quando joga contra as tuas equipas e pelo Man-O-Corf, nos fóruns?
- Porque é influenciável e se não for eu a influenciá-la em meu proveito, vão ser os da outra equipa a fazê-lo em proveito próprio. É desporto, é simples. Quanto aos fóruns, é só para picá-la. No outro dia ela apitou um jogo nosso e perdemos um jogo que não estávamos à espera de perder. Foi por 7 ou 8, e acho que não foi por causa dela, mas escrevi na net que tínhamos sido roubados porque assim limpamos um bocado a má imagem que fizemos nesse jogo.
Jack não percebia como lhe saíam as palavras sinceras. Queria dizer o que sempre dizia, o que diria a outra pessoa qualquer, que a Clarisse os tinha mesmo roubado descaradamente, mas a presença do Espírito exercia sobre ele uma estranha influência. Era como se tivesse engolido uma dose considerável do soro da verdade.
- Posso-te resumir o que é que se passou depois desse jogo, no teu futuro. A rapariga tentou defender-se na net, contra alguém que não sabia quem era, e quanto mais se defendia mais tu a atacavas. Entraste na vida pessoal dela, achincalhaste-a, baixaste ao ponto de referir a toxicodependência do pai dela...
- Não pode ser!
- Pode, pode. Uma coisa como “Tu entras para os jogos como o teu pai sai da Silver Street, quando lá vai buscar a dose diária. Quem sai aos seus não é de Genebra, eheh!”. Entraste numa espiral da qual não consegues sair, Jack. Criticas o que deves e o que não deves, como deves e como não deves, onde deves e onde não deves, quem deves e quem não deves... Olha aquela rapariga. Está a escrever um mail ao treinador a dizer que nunca mais joga. Já tinha desistido de apitar, por causa da forma como foi tratada por ti no último jogo, mas agora nem sequer consegue encarar os colegas.
- Ela até nem é má jogadora...
- Achas que isso interessa para quem tem a vida destroçada e via no Corfebol o seu escape? Achas que isso a vai fazer esquecer que os colegas a olham de lado por ter um pai toxicodependente?... Não consigo ver muito além, mas algum colega meu que tenha esta moça a seu cargo vai ter muito trabalho para lhe prolongar o futuro. Tu podes ter acelerado o fim da Clarisse, Jack.
- Mas eu não queria tal coisa, tenho a certeza. Eu, ou o meu eu do futuro, só queria defender a minha equipa. Eu tenho uma grande devoção pelo meu clube, Espírito, acredita que tenho.
- Gostavas que o teu clube tivesse os melhores jogadores?
- Claro. Estou a treinar um, o Leyton, que é muito bom. É internacional sub-19.
- Por causa da tua obsessão com o Leyton, esqueceste o Felix, que treina com um empenho fora de série. O Felix saiu da equipa, porque nunca o punhas a jogar e descarregavas sempre nele o que corria mal nos treinos e nos jogos.
- Acredito que isso venha a acontecer, sim. Mas, como tu disseste, eu quero mesmo é ter os melhores jogadores e o Felix não o é, decididamente.
- Mas olha para aqui.
- Um treino dos Red Urbans. E então?
- Olha aquele de t-shirt azul.
- É o Leyton! Traidor! Depois de tudo o que fiz por ele! Ei, e aquele ali não é o Felix?... A treinar na equipa A dos Red Urbans?
- Sim senhor. O Felix foi para lá e conseguiram puxar por ele, melhorar as suas competência técnicas. É a revelação do campeonato. Tudo porque mereceu a atenção da treinadora. E mereceu-a por causa do empenho que demonstrava, que foi uma coisa que tu ignoraste. O Leyton foi para lá por sugestão do Felix. Sabes como se davam bem. Queixou-se de que tu não eras um modelo para os jovens, sempre a protestar com os árbitros, e que só te preocupavas em ganhar os jogos e não em formar jogadores.
- É pena. Tinha grandes planos para aquele rapaz. Mais dois anos a treiná-lo...
- Não valia a pena. Daqui a dois anos... queres ver?
- Claro; estou curioso, agora... A jogar computador? Nunca gostei nem tive tempo, com o Corfebol.
- Saíste do Corfebol. Quando a Federação entrou em crise directiva só sabias criticar tudo e mais alguma coisa. Foi pedido apoio a todos e tu não só te recusaste a ajudar como fizeste tudo para que ninguém do teu clube se envolvesse. Entretanto apareceu um grupo disposto a agarrar na Federação e tu disseste que se alguém do teu clube se juntasse àquela “farsa”, como lhe chamavas, tu saías do clube. A Katty foi tesoureira da nova Direcção e tu ameaçaste sair.
- E saí?
- Por tua vontade, não. Amuaste e ficaste à espera que te fossem chamar, quando começou a nova época. Querias voltar só a pedido dos teus colegas, para saires por cima da situação. Mas ninguém te chamou. Quando achaste que já era tempo demais e que ias engolir o sapo, foste ao pavilhão e disseram que os treinos já tinham começado e que, para jogares, tinhas de começar na equipa D. Não aceitaste e foste-te embora.
- Tentei ir para outro clube?
- Achas que alguém te iria aceitar, depois de dizeres mal de tudo e todos?
- Saí do Corfebol?... Tão cedo?... Mas isto é a minha vida, seja a Cigarra ou seja a Formiga, eu preciso do Corfebol!
- Pois é, mas chega uma hora fria de Inverno em que as formigas fecham as portas às cigarras. A não ser àquelas cigarras que, por um bocado, esquecem as canções e arregaçam as mangas. Este mundo que é a tua vida tem sido construído por muitas formigas laboriosas, sempre à espera que os Man-O-Corf emprestem um bocadinho da sua energia para a edificação de uma estrutura comum, de que todos beneficiam.
- Tenho medo de não conseguir. – a abrupta sinceridade assustava-o – Cheguei a pensar ser dirigente do meu clube, mas sabia que ia ter de tomar decisões polémicas e que iria ser criticado. Para além da preguiça, confesso. Sim , tenho medo e sou preguiçoso; não sou aquilo que apregoo. Quero jogar Corfebol, mas gostava de ter coragem, competência e força de vontade para dar mais de mim à modalidade. Gostava de aprender mais sobre ser treinador, gostava de experimentar ser árbitro, gostava de ajudar a direcção do meu clube e também a Federação. Gostava de me envolver positivamente, de escrever na net o que vai bem e não me limitar aos podres da modalidade. Gostava de não ter a tendência para inventar esses podres quando não existem... Mas agora é tarde. Agora sou um domodependente agarrado a jogos de computador. Dei cabo da minha vida, Espírito.
- Talvez não. Não te esqueças de que estamos a falar do Futuro. O Futuro não é mais do que um infinito conjunto de possibilidades, que são determinadas pelo Presente.
- Assim como no “Regresso ao Futuro”, do Spielberg?
- É mais como os Trilhos Temporais Paralelos, do Walter Tevis. A História está constantemente a subdividir-se em diferentes trilhos temporais. Se hoje, ao meio-dia, decidires comer uma bolacha, daí a 1 minuto haverá um Jack a comer uma bolacha. Mas também haverá outro Jack, que um minuto atrás decidiu não comer a bolacha, e que estará no mesmo espaço e num tempo paralelo (igualmente ao meio-dia e um de hoje) a lavar uma maçã para roer.
- Quer dizer que posso mudar o meu futuro?
- Não. Quer dizer que o Jack sentado a jogar computador vai existir, mas que outro Jack poderá evitar essa situação. Tu podes construir essa variante. Está nas tuas mãos, Jack.
- Eu quero. Quero ser outro, a partir de hoje. O que é que posso fazer por isso, Espírito?... Espírito?... Espírito, onde estás?
O Espírito do Corfebol Futuro deixara de fazer sentido num contexto Presente. Jack não sabia se tinha acordado de um sonho ou se tinha, por artes mágicas, sido de novo atirado para a cadeira ao lado da cama. Estava lá, sentado, e lembrava-se nitidamente de todas as visitas que tivera. Só não conseguia perceber se tinham sido reais ou não.
Mas pouco interessava. Levantou-se com uma energia que já não experimentava desde as madrugadas dos seus aniversários na meninice. Saltou para o computador, ligou-se ao fórum onde costumava debitar insultos e escreveu, sob o pseudónimo de Man-O-Corf, “O meu nome é Jack Kulker e esta noite a minha vida mudou...”
O texto que escreveu, em que pedia desculpas a todos os que tinha ofendido e se mostrava disponível para colaborar humildemente com todos quantos quisessem fazer algo de positivo pelo Corfebol, tocou fundo a comunidade corfebolística e o benefício da dúvida foi dado a Jack, mesmo pelos que o viam com os piores olhos. Foi Vice-Presidente do seu clube e Secretário da Mesa da Assembleia Geral da Federação. Aproximou-se de Clarisse e acabaram por apaixonar-se, tendo Jack sido a força de que ela necessitava para ultrapassar as agruras da vida.
Jack foi o Coordenador da Comissão Organizadora do Campeonato do Mundo de sub-23 e acabou por receber um Prémio Especial da Federação pelo trabalho exemplar que desenvolveu nesse evento. Foi numa Gala anual da Federação e, quando subiu ao palco, os aplausos envolviam as faces de tantos que antes só lhe inspiravam rancores e ódios. Na fila da frente, Clarisse. Ao fundo, discretos, os 3 espíritos piscavam o olho a Jack e apertavam as mãos entre si, antes de voarem pela janela fora com o dever cumprido estampado na cara.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ora aí tá mais uma linda história, isto é k a malta gosta, parabens vozinho, por mais este momento delicioso....mas tá um coche confuso não dá para dares nomes aos Jackarés e aos outros? é k a malta assim não entende muito bem o significado, embora isso também não interesse, é fixe é a gente ouvir, mas acho que devias contar mais. Vou ficar á espera, e já agora não dava também para pores aqui nomes de alguns k tal como tu começaram á muito, e k que continuam a fazer algo pelo teu (nosso) desporto, e o k foi k fez com k basassem? Esses Jackarés tem k ir a andar e cada vez mais sermos mais purinhos!

segunda-feira, 27 junho, 2005  
Blogger Avô said...

Algumas histórias tinham alvos (no sentido positivo ou negativo ou neutro ou ambos) definidos.
Outras não.
Esta, decididamente, não tinha.
Tentei ser o mais vago possível na atribuição dos nomes (daí o inglês) das pessoas e dos clubes, para não se fazerem associações.
É claro que há Jacks e Clarisses e Leytons e Felixes no Corfebol português. Se não na totalidade das suas características, pelo menos nas principais que são apresentadas.
Que cada um leia e crie a sua imagem mental de cada personagem. Se o quiserem fazer, claro.

quarta-feira, 29 junho, 2005  
Anonymous Anónimo said...

Desta, concordo consigo vozinho....

quarta-feira, 29 junho, 2005  
Blogger Mirian Gomes said...

Olá

Apesar do comentários...foi procurando versões de "O Pequeno Príncipe" que cheguei a seu blog - muito interessante por sinal.
Tenho um também - com a mesma estampa...veja: http://www.miriangomes.blogspot.com

Grande abraço, continue escrevendo...eu aqui do Brasil ficarei feliz em ver novos textos.

quarta-feira, 09 abril, 2008  

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